“Ele teria que voltar à sua terra natal, para ver se o tempo ainda podia balançar-lo”

(Mia Couto)

Minha vida começa com uma fuga. Aquela da minha mãe.

Ela esperou até que meu pai saísse, com pressa pegou as suas poucas coisas e fugiu de casa.

Ele se encaminhou ao longo do caminho, meus irmãozinhos piãvam ao lado e eu, na capulana, que lhe dormia em cima.

Era uma fuga de amor, o amor para mim, para ele, para a vida.

Ele se rebelou contra o meu pai que queria me matar.

Porque matar uma criança de 2 meses? Eu nunca soube: por dinheiro, para fazer uma feticeir … minha mãe nunca me disse!

Até aos 5 anos moro em Intuchi, a aldeia da mãe, depois me mudei para Palma.

Para a mãe lhe foi oferecido por seu tio, um agricultor de uma grande plantação de coco, um trabalho em seu quiosque de venda de sura. A mãe aceito: era pobre e quando se é pobre não se tem muito possibilidade de escolha!

Naqueles tempos havia a guerra. Eu na altura era pequeno, mas o que eu vi e ouvi, eu nunca pensei de poder ver a paz, eu nunca pensei que haveria um dia em que teria visto os carro viajar tranquilos nas ruas.

Durou 10 anos aquela guerra. Era uma guerra fantasma. Não era uma guerra do exército. Era uma guerra de gangues sem ordem, com muitos comandantes que sabiam só semear o medo.

Em todo o lugar estava o apito da morte, havia gemidos de vidas que se apagavam. Para nós, os sons tornaram-se uma parte da paisagem.

Os bandidos de repente lançavam-se sobre nós, matavam, roubavam tudo o que era comestível e depois queimavam as casas.

A nossa preocupação era salvar não só a vida mas também a comida, se não queríamos depois morrer de fome.

As aldeias se esvaziavam, os refugiados enchiam as praias.

Eu me lembro muito bem daquele dia. Eram as 6 da manha. A mãe estava preparando a papa. Eu zumbia dando voltas nela como sempre fazia quando preparava a comida.

As metralhadoras vieram de repente em cima de nós. Tudo aconteceu tão rápido!

Cada um fugiu pensando só em si mesmo. As mães perderam seus filhos, os filhos perderam suas mãe.

Comecei a correr nas minhas pernas de bebé … ratatatà… corria… ratatatà… corria sempre mais rápido com o som das metralhadoras nas orelhas, sem olhar para trás. Corria sozinho em direção ao mar.

Eu já estava na água quando uma mão vigorosa de um homem me içou no barco.

No mar estávamos seguros. Os bandidos temiam a água, eles eram homens de terra.

Fiquei escondido, com muitas outras pessoas desconhecidas, por 3 dias.

Quando fui levado na aldeia o abraço da minha mãe era doce e eu, apertado a ela, eu respirei o seu cheiro, o cheiro que eu tinha deixado no nariz daquele dia em que salvou a minha vida.

Estes foram os tempos de guerra. Estas são as memórias de uma criança que a tenha vivido.

Chega o tempo da paz e juntamente com ela chega também o tio materno da Alemanha, ai onde tinha emigrado para escapar da guerra e da pobreza do Moçambique daqueles anos.

Ele me leva consigo para Pemba.

“Nós, pessoas pobres, temos esperar que Deus nos abençoa e crer em ele. Com o tio poderás estar bem”, me disse a mãe despediu-me.

adelino-kedo-grande-sottoPara o tio foi cansativo conviver comigo já que era um miúdo.

Ele não tinha jeito, não entendia que, para quem ainda é um garoto, é normal ter a vontade de  jogar, de se divertir.

“Preguiçoso…bandido…” Era assim que ele me chamava. Eu com ele estava sempre pior.

Quando eu soube que em Pemba morava uma minha tia, eu fui ter com ela.

Ela me deu uma grande lição de vida!

Muitas vezes, quando saía com os amigos e voltava depois da hora do almoço e do jantar não encontrava a comida para mim. “Nesta casa há um tempo para comer. Se queres comer agora acende o fogo, pega a farinha, prepara o caril e quando estiver tudo pronto podes comer”, me dizia.

Então eu pensava que fosse uma punição demasiado dura, mas depois crescendo, percebi que ela estava me ensinando, através de simples gestos da preparação da comida, a cuidar de mim mesmo, para não depender dos outros.

“Tu poderás comer também quando eu já não estiver mais” a frase, que ela me dizia, agora eu entendo no seu significado real.

Hoje eu faço a mesma coisa com o meu filho, o maior!

Eu na altura tinha cerca de 9 anos. Vi que as pessoas da minha idade iam para a escola… mas ninguém nunca me disse: “Agora te matriculo na escola.”

Eu trabalhei como carregador. Eu era sempre o primeiro a chegar quando um grande carro parava.

Eu não estava feliz, mas eu dizia para mim mesmo: “Quando eu crescer meus familiares que oram mal comigo vão ter que me encarar”.

Eu sempre pensei que a vida não fosse generosa comigo, que os meus familiares não me soubessem apreciar para aquele que eu valia, que não me soubessem dar o bem que eu desejava.

Eu queria aprender a escrever o meu nome. Se não deixas uma marca, uma marca no papel que fica ai quando não estiveres, estas destinado a dispersar-te no ar . E eu queria marcar a minha passagem!

Então a avo matriculou-me na escola de Moeda, onde eu fui quando eu decidi afastar-me do tio o mais longe possível.

Na altura não quis voltar na casa da mãe. Ela vivia em Palma com seu novo marido e eu estava convencido que ela já me tivesse esquecido. Não era mais ai a minha casa!

Na escola íamos de manhã e à tarde eu tinha que ajudar a minha tia na sua machamba. Era fadigoso trabalhar no campo e também não entendia porque eu tinha que ir na machamba e as minhas primas não.

Sentia que estava a sofrer uma injustiça.

Aos 16 anos começo a ganhar bastante dinheiro desfilando na discoteca. Tenho um corpo magro e sei vestir bem qualquer roupa. Eu era muito requisitado como modelo.

Entretanto a convivência com a minha tia e as minhas primas se tornou cada vez mais amarga.

Um dia, depois de ter-me injustamente acusado de ter levado o dinheiro que estava em casa, minha tia me expulsou fora de casa.

“Mas onde vou com todo esse sofrimento, eu não tenho mais uma família”. “Em qualquer lugar mas não aqui”, foi sua inapelável resposta.

Voltei para Pemba. De dia girava de casa em casa procurando trabalho como empregado, a noite dormia na rua, no meio das gangues dos meninos da rua.

Em fim meu tio me encontrou de novo. Para por um fim a esse meu vaguear, ele pensou que fosse uma boa coisa deixar-me fazer a inscrição de alistamento no exército.

Mas o meu nome não saiu na lista dos escolhidos.

Na altura eu senti muito, hoje eu acho que foi a minha sorte: se eu havia me tornado militar não teria conhecido o teatro e a musica.

Voltei para Palma, onde havia a casa da mãe. Tinha medo de ir para a casa dela, eu temia um novo recuso. Já tinha recebido muitos!

Enquanto a mãe foi feliz de voltar-me a ver.

Quanto tempo eu tinha perdido dando voltas para encontrar uma casa: em Palma, perto de quem com coragem me tinha salvado, encontrei finalmente a minha casa!

Não queria mais fazer trabalhos de fadiga. Queria trabalhar sentado em um escritório, queria um emprego que me desse dignidade.

“Se queres conseguir na vida tens que viver com mais astúcia” eu disse a mim mesmo um dia.

E esta decisão guiou as minhas escolhas daquele dia em diante.

Eu agora cobro funções que exigiriam nível de escola superior respeito a o meu.

Agora faço teatro e música, os meus dois amores. O teatro é o mundo do respeito das regras, dos horários impostos por outros, a música é meu mundo livre, posso fazer-la em qualquer lugar, quando eu quero, sou eu que decido o momento.

Esta conquista é o resultado da minha forte ambição, mas se eu consegui é também graças a ajuda de Deus.

E Deus me abençoou também agora!

Em maio deste ano acabei um importante projeto do governo para o qual eu trabalhava. Eu estava sem emprego.

Um dia recebi um telefonema: “Venha fazer uns ensaios, os brancos da Eni estão procurando atores para um projeto sobre a saúde”… e aqui estou eu, em Alcatraz na Itália, a contar-vos a minha história… quem diria!!!

Agora tenho que ir, começam os ensaios do show.

Ainda eu não vos falei do Mister Kedo … será para a próxima vez.

Obrigado

Adelino